quarta-feira, 23 de setembro de 2009

IMPLICAÇÕES DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA

IMPLICAÇÕES DA VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA PARA PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA
Prof. Luís Valente (UFPA- junho de 2008)

Desfazendo um mito: o da unidade lingüística do Português do Brasil
Nos dias de hoje tem crescido o número de publicações, artigos e reflexões sobre a falácia da unidade do Português do Brasil, sobretudo do ponto de vista atual e imediato das realizações lingüísticas. Esses estudos sincrônicos têm como argumento a variedade das formas encontradas no uso real da língua, o que já é suficiente para o desmoronamento do mito. Entretanto, para liquidar de vez com a questão, não considero desnecessária uma abordagem histórica sobre o caso, pelo contrário, penso que seria tomar o problema pela sua causa, isto é, pela sua raiz. È o que começarei fazendo, embora mais tarde tenha que retomar ao aspecto sincrônico por intermédio de uma abordagem sociolingüística.
Para começar, vale ressaltar que desde a colonização do Brasil, sempre houve influências políticas no tratamento das questões lingüísticas. Pode se dizer, por exemplo, que a tentativa de homogeneização lingüística no Brasil, vem desde o trabalho catequético dos jesuítas já no século XVI, quando o então Padre Anchieta, talvez sem se dar conta, colaborou para a extinção de muitas línguas indígenas existentes no litoral do Brasil, mais precisamente na faixa que vai hoje do Pará ao Paraná como afirmou MATOS e SILVA (1999). Nesse sentido, percebe-se a forte influência dos jesuítas nas escolas quanto ao uso lingüístico, ou seja, desde aquela época já se valorizava a língua do colonizador em detrimento a do colonizado.
Essa situação se acentua em 1757 quando Marquês de Pombal proíbe por lei o uso de quaisquer outras línguas a não ser a Portuguesa, além de criar a primeira rede leiga de ensino e expulsa os jesuítas do Brasil. O resultado de tudo isso foi a criação de uma nova política lingüística e cultural brasileira, talvez a primeira no sentido institucional com a obrigatoriedade da Língua Portuguesa: eis o embrião do mito da unidade lingüística brasileira.
Nos anos seguintes, com os indígenas, já em número reduzido, recuados para o interior e os negros sem nenhum direito nas senzalas, firmou-se a Língua Portuguesa como língua nacional fortalecida pela crescente urbanização e consolidação da escola, principalmente a partir de 1908 com a vinda da família real para o Brasil.
Esse pensamento aristocrático colonial passou pelo Brasil independente e continua até hoje na concepção de alguns gramáticos como Darcy Ribeiro quando escreveu: “è de assinalar que, apesar de feito pela fusão de matrizes tão diferenciadas; os brasileiros são hoje, um dos povos mais homogêneos lingüística e culturalmente (...)” (apud BAGNO 2002 p. 15).
Entretanto, paralelo a essa teimosia no desconhecimento de um Brasil pluriétnico, pluricultural e plurilíngüe, surgem os avanços dos conhecimentos lingüísticos a partir da segunda metade do século XX, favorecendo o desfazer-se do mito, contando, de um lado com os estudos dialetológicos diatópicos de Serafim da silva Neto e Celso cunha na década de 60 responsáveis pelas primeiras pesquisas de campo no Brasil rural e por outro, pelos avanços dos estudos sociolingüísticos urbanos nos anos 80, iniciado no Rio de Janeiro sob a responsabilidade de Antônio NARO.

O reconhecimento das variedades lingüísticas
Luiz Carlos TRAVAGLIA (2001), em sua obra Gramática e Interação talvez tenha sido quem mais se preocupou com o fenômeno da variação lingüística numa proposta classificatória e didática para o 2º grau. Segundo o autor, a variação pode ser classificada do ponto de vista do falante. Assim, tem-se a variação dialetal que está em função dos aspectos como: territorial, social, idade, sexo, geração, etc. Considerando como o uso da língua pode ser manifestada pelo falante, TRAVAGLIA (2001), cita a variação de registro, que por sua vez está condicionada, por exemplo, pelo grande formalismo apresentado num determinado discurso.
Magda SOARES (1986), também escreveu sobre o assunto, porém, numa perspectiva mais social. Para a autora, a variação pode se dar em decorrência de diferenças sociais, espaciais e de registro.
Contudo, tomarei para este estudo uma postura um tanto fiel à sociolingüística variacional que a meu ver, contempla as classificações acima de TRAVAGLIA e SOARES, não só pela natureza deste ramo da lingüística em lidar com variáveis, mais acima de tudo pelo poder de visibilidade do fenômeno estranhado no seio social e conseqüentemente na relação concreta imediata das condições de produção e uso da linguagem, além da possibilidade de trazer grandes benefícios para o ensino.
Tomando Fernando TARALO (1997), com referência para apreciação da variação lingüística numa perspectiva variacionista, pode-se dizer que o fenômeno variacional tende a sofrer influências de fatores de natureza lingüística (internas) e sociais (externas).
Com relação aos fatores lingüísticos capazes de influenciar na variação pode-se destacar a natureza da variável, a posição do grupo de força, o número de sílabas de palavras e etc.. Enquanto como fatores sociais podemos ter: o sexo, procedência, faixa etária, etc.
Ressalte-se ainda, o peso constante dos fatores externos presentes na variação lingüística. Algumas vezes, os dois fatores (externos e internos) são usados para melhor explicar o fenômeno da variação que lingüisticamente pode ser manifestada em três níveis: fonológico, sintático e semântico.
Vejamos:
1. Variação no nível fonológico
[‘butu] [‘botu]
[pesvi] [peisvi]
[minina] [menina]

2. Variação no nível sintático
Não vi ela hoje. Não a vi hoje.
Nós vai . Nós vamos.
Eu vi o menino que o pai dele é pedreiro. Eu vi o menino cujo pai é pedreiro.

3. Variação no nível semântico
Receita Bula
Bago de remédio Comprimido
Cabidela Frango à molho pardo

Os exemplos acima de fictícios nada têm, uma vez que ocorrem naturalmente pelo menos na região do Baixo Tocantins. Estudos recentes, tendo como objeto de estudos os falares dos ribeirinhos cametaenses. Refiro-me mais precisamente ao trabalho da colega Carla Faial, intitulado: Preconceito Lingüístico: um estudo sobre o comportamento e atitudes acera do fenômeno r > l. (TCC, 2001, orientado pelo professor Ms. Orlando CASSIQUE), têm evidenciado a presença do dialeto amazônico, denominado pelo professor Serafim da SILVA NETO “Canua cheia de cucu carregadu de pupa a prua”, no dizer de CASSIQUE. Frente a isso, comprova-se o que diz BARTONI (In: KLEIMAN, 2003 p. 122), que o Brasil vive um estado de diglosia sem bidialetismo extensivo, ou seja, existem variedade padrão e variedades não-padrão sem que os falantes tenham o domínio de ambas. Eis aqui uma pergunta: e a escola?, o que tem feito a esse respeito? De imediato BARTONI parece já ter respondido a questão, pois se não há bidialetismo e os falantes se comunicam naturalmente apenas nos dialetos não-padrão a escola não tem feito seu dever se casa.

O reconhecimento da crise no ensino da Língua Portuguesa
Se a escola não tem dado conta do recado, qual seria a causa de seu fracasso? Muitos tentaram responder ou pelo menos opinaram a esse respeito.
SOARES (1986), por exemplo, cita algumas possíveis causas da configuração do quadro atual nada animador do ensino da Língua Materna. A autora inicia com “ideologia do dom”: por muito tempo acreditava-se que a causa do fracasso no ensino do Português era exclusivamente individual (aluno), pois todos partiam exclusivamente de um mesmo ponto. Em seguida, a autora, menciona a ideologia da “deficiência cultural”. Essa causa, além de discriminadora, justificava um ensino prescritivo, apenas de repasse de conhecimento como a da educação bancária (Cf. FREIRE, In: SILVA, 2000 p. 74). Por último, a ideologia da “diferença cultural”, segundo a qual a responsabilidade do fracasso seria da escola que baseada numa educação burguesa de educação, transforma diferença em deficiência. Por sua vez, SUASSUNA (2003 p. 19), considera a “escolarização” da língua por uma pedagogia excludente baseada na concepção do “certo” e do “errado”, a principal causa do problema. Já MATOS e SILVA (1998), prefere interpretar essa crise defendendo um olhar menos estigmatizante sobre a escola, não vendo-a apenas como reprodutora de interesses da classe dominante. Mas, como numa realidade dialética. Para a autora, o descompasso no ensino da língua provém de uma coisa boa: da “democratização” da escola, isto é, alunos da classe inferior estão ocupando cada vez mais o banco de uma escola feita para a elite. (Cf. GERALDI: 1985, p. 43)

Variação e escola
Segundo GERALDI (1985), a escola não está preparada para o recebimento de um público tão diversificado. O autor ressalta que “a democratização da escola, ainda que falsa, trouxe em seu bojo outra clientela e com ela diferenças dialetais bastante acentuadas” (p. 43). MATENCIO acrescenta dizendo que “com a democratização da rede pública de ensino (...) as mudanças ocorreram apenas no fato infra-estrutural e não na alteração dos objetivos e práticas educacionais” (p. 75). Ainda segundo a autora, essa seria a justificativa para o elevado índice de repetência e evasão escolar a parir da década de 70.
Estudos sociolingüísticos como os de CASSIQUE (2003) têm mostrado essa falta de diálogo da escola com as diferenças, como se observa nos resultados abaixo:

Tabela 13. Escolaridade: (CASSIQUE: 2003)
PERCENTUAL PESO RELATIVO
Analfabeto 274/536 = 51,1% . 81
Ensino fundamental 135/536 = 25,2 % . 45
Ensino médio 135/536 = 23,7 % .19

Evidencia-se nas primeiras conclusões de CASSIQUE, relacionado ao alteamento /o/ > /u/ na cidade de Breves, a influência da escola na diminuição desse traço característico do amazônida. Isso significa a estigmatização da própria identidade lingüística em função da variedade padrão, pois a linguagem não só reflete o lugar social de quem fala, mas faz parte desse lugar. No dizer de Deborah CAMERON (1995):
“A identidade não pré-existe à linguagem. Falantes têm que marcar suas identidades assídua e repetidamente”. Dessa forma a escola precisa deixar de ser normalista ou anormalista e passar a ser plurinormalista, em outras palavras, a escola precisa deixar de cultuar apenas uma norma, ou nenhuma, mas conviver com todas.

A solução para um impasse e a contribuição da sociolingüística
Num modelo de sociolingüística baseada na estrutura social como determinante para o comportamento lingüístico, BERNSTEIN (1971) fala em código elaborado, proveniente da classe média e código restrito, oriundo da classe trabalhadora. O autor afirma que a escola se preocupa com a transmissão de significados universais, usa e quer ver usado o código elaborado, daí a limitação da classe trabalhadora.
Por outro lado BARTONI numa linha de pesquisa mais variacionista e tendo a escola como a principal entidade responsável pelo trabalho com a norma padrão, pesquisou as unidades discursivas presentes na sala de aula. Para tanto, delimitou para sua elaboração três eventos de fala: 1) fala espontânea; 2) fala expositiva; 3) evento IRA (iniciação, resposta, avaliação) e 3) leitura.
As primeiras conclusões podem ser verificadas na tabela abaixo:

Tabela 5 – Tipos de eventos (BARTONI, 2003)
Aplicação/Total Freqüência Peso relativo
Evento 1 587/1009 58 % . 39
Evento 2 748/1198 62 % . 43
Evento IRA 205/280 73 % . 52
Evento 3 422/447 94 % . 86

A partir desses dados pode-se detectar a importância da leitura para o ensino da Língua Materna na sala de aula, como elemento responsável pelo acesso a norma culta.

Considerações finais e implicações pedagógicas
Percebe-se que os estudos de natureza sociolingüística têm muito a contribuir com a escola, principalmente porque mostram que a escola ainda não aprendeu a trabalhar com as diferenças dialetais.
È possível, portanto, notar que a escola como um fator extralingüístico, aparece dentro dos estudos sociolingüísticos (vide BARTONI op. cit), facultando a sociolingüística não só a contribuir nos projetos de ensino-aprendizagem de línguas numa perspectiva mais humana e menos estigmatizante, como também para fornecer dados (suporte) para a criação de políticas lingüísticas, que para o professor Mestre CASSIQUE “são formas concretas de atuação institucional em termos de linguagem verbal dos agrupamentos humanos” (cf. SOARES, 1986; KLEIMAN, 2003)
Nesse sentido, MATOS e SILVA (1998) argumenta que a escola deverá ter uma organização curricular diferenciada para melhor atender a diversidade sociocultural e sociolingüística da população que a serve.
Por outro lado, MATENCIO (op. cit.) adverte para a qualidade da formação linguístico-pedagógico do professor, deixando-o a par das descobertas científicas recentes e a inclusão destas nas práticas em sala de aula.
Um exemplo desse último fator proposto por MATENCIO é o desenvolvimento da lingüística textual com os estudos sobre gêneros do discurso, que ao meu ver precisa ser urgentemente adotado como suporte para o trabalho no ensino do Português, não só pela anulação do grande equívoco causado pela confusão entre gêneros e tipos textuais, mas sobre tudo pelo seu potencial capaz de abarcar a língua nas suas mais diversas realizações no seio social, além de dar conta de sérios problemas com relação à abordagem textual em sala de aula. (vide BAKHTIN, 2003; MARCUSCHI, 2002 e SEF, 2001)

Referências bibliográficas:
BARTONI, Stella Maris. Variação Lingüística e Atividade de Letramento em Sala de Aula. In: KLEIMAN, B. Ângela. Os Significados do Letramento. Campinas: Mercado de Letras, 2003.
MATTOS & SILVA. Rosa V. (1998) Diversidade Lingüística, Língua de Cultura e Ensino do Português. Atas do Simpósio – Diversidade Lingüística no Brasil.
SOARES, Magda. (1986) Linguagem e Escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática.
TRAVAGLIA, Luís Carlos. A Variação Lingüística e o Ensino da Língua Materna. In: ____________ Gramática e Interação. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.
SUASSUNA, Lívia. Ensino de Português: uma abordagem pragmática. Campinas: Papirus, 1995.
MARCUSHI, L. A. (2002) Gêneros Textuais: definições e funcionalidade. In: Bezerra, M. A. Gêneros Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna.
SEF, Parâmetros Curriculares Nacionais. Língua Portuguesa. MEC: Brasília, 2001.

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