quinta-feira, 25 de março de 2010

QUEM RI DO QUÊ?

QUEM RI DO QUÊ?
Marcos Bagno - Janeiro de 2010

Uma das grandes contribuições da ciência linguística foi provar a existência de traços universais, presentes em todas as línguas humanas. E poderia ser diferente? Afinal, todos os humanos, apesar de diferenças externas, superficiais (cor da pele, formato dos olhos, textura do cabelo), são biologicamente uma única espécie, dotada das mesmas potencialidades cognitivas, já que o cérebro é o mesmo. Por isso, o grande Lévi-Strauss pôde elaborar uma antropologia que identificava o que há de comum, de similar e de universal nas culturas humanas, apesar das aparentes diferenças.

Com isso, aprendemos que as línguas passam pelas mesmas etapas em suas transformações. A mudança linguística é um processo sociocognitivo, isto é, ela se deve a fatores sociais (variação dialetal, contatos entre falantes de línguas diferentes etc.) e a processamentos mentais (analogia, reanálise, metáfora, mentonímia, abdução etc.) e ocorre ininterruptamente. Só que ocorre, em cada língua, com ritmos diferentes.
Para o senso comum, porém, herdeiro de uma visão arcaica e pré-científica de linguagem, surgida no mundo grego no século III a.C., a mudança linguística representa a "corrupção" e a "degradação" da língua, sempre identificada exclusivamente com a língua escrita dos grandes escritores, como se não existisse a língua falada e como se a escrita não se manifestasse também em outros tipos e gêneros textuais.

Essas ideologia preconceituosa impede que as pessoas (inclusive profissionais da linguagem, professores de línguas e, algumas vezes, até linguistas!) percebam fenômenos interessantíssimos que servem (ou deveriam servir) de base para muitas deduções importantes sobre o funcionamento das línguas. A cegueira (e a surdez) linguística se enraizou profundamente na cultura ocidental e os cento e poucos anos de vida de uma verdadeira ciência da linguagem ainda não foram suficientes para abrir as mentes, os ouvidos e os olhos da maioria das pessoas sobre o assunto.

Os brasileiros vão estudar inglês e aprendem que nessa língua a morfologia verbal é simplíssima. No presente, a única forma diferente das outras é a da 3a pessoa do singular, que ganha um -s (he lives), enquanto as outras permanecem idênticas (I, you, we, they live). No passado, tudo fica exatamente igual (I, you, he, she, it, we, you they lived). Ninguém se assusta com isso, ninguém ri disso, e muitos até acham bom que seja assim, porque é mais fácil de aprender do que nas línguas (como o português, o alemão etc.) que têm uma morfologia verbal bem mais diversificada.

Qual é a reação, porém, desses mesmos brasileiros quando topam com algo do tipo eu morava, tu morava, ele morava, nós morava, vocês morava, eles morava? O riso, o deboche ou, no melhor dos casos, a compaixão pelos "infelizes caipiras" que "não sabem falar direito", como se fossem menos inteligentes ou até menos humanos que os demais falantes. Ora, do ponto de vista exclusivamente estrutural, não há nada de melhor em I / you/ he / she / it/ we / you / they lived nem nada de pior em eu / tu / você / ele / ela / nós / a gente / vocês / eles / elas morava... O fenômeno linguístico é o mesmo, a recepção sociocultural do fenômeno - e só ela - é que é diferente. E é aí que a porca torce o rabo!

Texto Publicado extraído de:
http://www.marcosbagno.com.br/conteudo/arquivos/art_carosamigos-jan2010.htm

sexta-feira, 12 de março de 2010

O ensino da comunicação: Bernard Schneuwly diz que os professores precisam de material didático para trabalhar com leitura e escrita

O ensino da comunicação
O psicólogo suíço Bernard Schneuwly diz que os professores precisam de material didático para trabalhar com leitura e escrita
Denise Pellegrini
Bernard Schneuwly. Foto: Rogério Albuquerque


Você pode não conhecê-lo pelo nome, mas o trabalho do suíço Bernard Schneuwly, professor da Universidade de Genebra, já deixou de ser novidade há algum tempo, principalmente para quem leciona Língua Portuguesa. Suas idéias sobre gêneros e tipos de discurso e linguagem oral estão nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Desde a década de 1980, o psicólogo de 49 anos, doutor em Ciências da Educação, pesquisa como a criança aprende a escrever. Os estudos resultaram na criação de seqüências didáticas para ensino de expressão escrita e oralidade. Os conceitos presentes nesse material didático se difundem aos poucos no Brasil. Schneuwly vem colaborando com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em trabalhos na área e pesquisadores da instituição estão publicando uma coleção com seqüências didáticas inspiradas no modelo suíço. A seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu a NOVA ESCOLA.

O que seus estudos propõem de novo no ensino da língua?
Bernard Schneuwly Colocamos a questão da comunicação no centro do ensino da língua materna. Esta é a mudança mais significativa: dar às crianças mais possibilidades de ler, de escrever textos, de aprender gramática e ortografia em função da comunicação. As aulas de gramática devem ser dadas em função dos textos? Schneuwly É essencial ensinar as crianças a ler e a produzir textos. Quando começam a estudar elas têm de realizar essas tarefas e, de maneira geral, não se dá importância suficiente à questão. Isso não significa deixar de dar também um pouco de gramática à parte. É possível fazer isso analisando sentenças complexas extraídas dos próprios textos. Há ainda uma outra maneira, mais forte na Suíça: pedir que os estudantes escrevam sentenças que depois são usadas para análise e aprendizado. Quanto tempo da aula deve-se dedicar à gramática? Schneuwly Em meu país, e eu sei que aqui acontece o mesmo, cerca de 70% ou 80% do ensino da língua corresponde a gramática e ortografia e apenas 20% ou 30% a leitura e escrita. Temos trabalhado para chegar a um equilíbrio. Além disso, acho que há gramática demais nas séries iniciais e de menos nas finais. Na Suíça, depois do ensino elementar, os estudantes aprendem apenas literatura. Mas há problemas gramaticais complexos que poderiam ser estudados por jovens de 16, 17, 18 anos.
Por que há um peso maior em ortografia e gramática?
Schneuwly Porque é mais fácil dar aulas sobre esses dois temas. Existem livros didáticos e dicionários disponíveis. No entanto, muitos educadores não sabem o que fazer no momento de trabalhar leitura e escrita. Eles precisam de material para isso.
É o trabalho que o senhor vem desenvolvendo na Suíça?
Schneuwly Sim. Em 1990 houve uma demanda oficial do governo para que o grupo de pesquisa do qual faço parte criasse um material que ajudasse a ensinar expressão escrita e oralidade. Ao mesmo tempo os docentes diziam, em congressos, que precisavam lecionar comunicação mas não tinham métodos. O fato de os professores terem pedido mudanças foi muito importante. Era sinal de que eles estavam prontos para adaptar-se. Mais do que se tivesse havido uma imposição.
Como é o material?
Schneuwly São quatro volumes. Um destinado para 1ª e 2ª séries, um para 3ª e 4ª, outro para 5ª e 6ª e o último para 7ª , 8ª e 9ª. Em todos eles há uma apostila que deve ser usada pelo aluno e outra pelo professor, escrita para que ele possa usá-la sem dificuldade, com apenas um dia de treinamento. São cerca de 40 seqüências didáticas para diferentes tipos de texto: científico, ficção científica, histórias de aventuras, crítica literária, entre outros.
A oralidade também é trabalhada?
Schneuwly Sim. As crianças a desenvolvem ao fazer uma entrevista, participar de um debate ou expor um tema para uma platéia, por exemplo.
Recursos como esses conseguem mudar o trabalho do docente? Ou ele precisa de mais formação?
Schneuwly Esse é um problema importante e sua solução deve levar um longo tempo. Há dois pontos envolvidos. Um é a formação inicial. A nova geração tem uma educação melhor e consegue trabalhar da maneira que propomos com mais facilidade. Por outro lado, há a necessidade de formar aqueles que já estão na ativa, que são numerosos. Com o material em mãos, a capacitação pode se dar na teoria e na prática.
Como as seqüências são usadas?
Schneuwly A criança entra em contato com vários gêneros de texto que serão vistos novamente no futuro. Na primeira vez que estuda entrevista, por exemplo, ela está no 4º ano. Nessa fase, conhece técnicas simples e vai entrevistar um funcionário do colégio. Ela prepara o questionário mas aprende que, se formular as questões espontaneamente, conseguirá melhor resultado. Uma folha pode ser levada com a relação de perguntas de um lado e, no verso, palavras-chave. A consulta será feita só se houver problemas. Outra dica é perguntar algo sobre o que o entrevistado acabou de falar, e não apenas emendar uma questão da lista na outra.
Quando esse mesmo tema será visto novamente?
Schneuwly No 8º ano, só que com técnicas mais elaboradas. Nessa fase, os alunos estão estudando os diferentes modos de falar. Por isso, têm que entrevistar estrangeiros que aprendem francês em Genebra, ou especialistas em oralidade, como um padre ou um advogado. Eles vão ouvir, ler, analisar, observar, comparar, fazer, escrever. Vão aprender também como redigir a abertura do artigo, apresentando o entrevistado. Nosso método leva à análise e à produção de um gênero.
O programa se desenvolve em forma de espiral?
Schneuwly Exatamente. O estudante vê determinado gênero uma vez, depois uma segunda e, às vezes, até uma terceira. Debates, por exemplo, são estudados na 3ª, na 6ª e na 9ª séries. A primeira coisa que ele aprende é a ouvir o que está sendo dito. Isso porque é importante usar o que o interlocutor disse, integrando as palavras dele ao seu próprio discurso. Outra coisa: se uma pessoa fala algo que deve ser contestado, isso deve ser feito de maneira não agressiva. São muitas as técnicas. Aprendemos, de maneira natural, os gêneros orais primeiro.
Nas aulas eles devem ser ensinados antes dos escritos?
Schneuwly Eles podem ser vistos ao mesmo tempo. A escola não ensina a falar. E os brasileiros, particularmente, se expressam muito bem. As crianças daqui são fantásticas! O que precisamos é prepará-las para situações formais, como um debate, uma exposição para um grupo. Para nós, pode começar ao mesmo tempo, porque a escrita ajuda a oralidade e vice-versa.
A psicolingüista argentina Emilia Ferreiro defende há mais de 20 anos a utilização de textos variados, principalmente em substituição à cartilha. Há relações entre as idéias defendidas por ela e as suas?
Schneuwly Acho que dizemos a mesma coisa com outro nome. Talvez uma diferença esteja no fato de que nós, quando trabalhamos com um gênero, nos aprofundamos bastante nele. Isso leva uma semana, duas, até quatro. Uma outra possível diferença é que Emilia Ferreiro trabalha apenas com os pequenos e nós, até com os adolescentes. Mas as idéias provavelmente não são contraditórias. O importante é que os gêneros representam textos como são vistos nas situações diárias.
Existe um tipo de texto que só é visto na sala de aula?
Schneuwly Quando você aprende um gênero durante as aulas ele sai da situação social e se transforma num gênero escolar. Uma entrevista feita nessa situação não é a mesma coisa que uma realizada por um profissional. Para nós não há problema nisso, porque acreditamos que a escola é uma instituição social onde as pessoas aprendem. Então, é absolutamente necessário que faça adaptações. Emilia Ferreiro critica as cartilhas por serem textos que não existem fora da classe. Não concordo com ela nesse ponto.
Por quê? Isso não é verdade?
Schneuwly A idéia de Ferreiro é velha porque parece ruim haver diferença entre a vida real e a escola. É claro que não deve haver uma grande diferença. Mas alguma, sim. Na escola há uma situação social real para a aprendizagem. Lá pode-se correr riscos e cometer erros. Um jornal serve para informar as pessoas. Se você o leva para a sala de aula, ele não está lá mais para esse fim, mas para ser aprendido. Queiramos ou não, não é mais o mesmo contexto social.
Quando um professor leva diversos materiais para a sala de aula, está trabalhando com diferentes gêneros de texto?
Schneuwly Não. Gênero é a forma mais ou menos convencional que um texto assume: uma entrevista, uma receita culinária, uma história de aventura. Quando você lê um jornal, por exemplo, há muitos gêneros dentro dele e a criança tem que aprender isso.
Gêneros são conteúdos ou ferramentas de trabalho?
Schneuwly São os dois. É muito fácil explicar isso quando se pega uma receita culinária. Ela é um gênero, tem uma certa forma lingüística, uma estrutura, um vocabulário, mas ao mesmo tempo é, claro, uma ferramenta usada numa situação de comunicação. Transmite a uma pessoa como se prepara uma omelete, por exemplo. Sem essas formas estabelecidas, a comunicação seria muito complicada.
Se você não soubesse como é uma entrevista, como seria nossa comunicação nesse momento? Os estudantes expostos a essa metodologia aprendem mais do que a ler e escrever de maneira adequada?
Schneuwly Com certeza. Por exemplo, quando os ensinamos a escrever uma carta para um jornal sabemos que, provavelmente, eles não terão necessidade de produzir muitos textos desse tipo. Mas, nesse processo, aprenderão também a argumentar. Eles adquirem capacidades, principalmente capacidades gerais de comunicação.

Entrevista com Joaquim Dolz:De que adianta conhecer o código, se não entende o texto?



Autor: Luiz Henrique Gurgel
Quando escolhemos o gênero como unidade de ensino, o que podemos ensinar aos alunos?


Joaquim Dolz – É preciso clarear os currículos. Os gêneros, quando entram na escola, trazem elementos das práticas sociais de referência, mas tornam-se objetos para aprender e escrever. É fundamental definir as capacidades linguísticas discursivas que se pretende desenvolver com os gêneros. Sou partidário de trazer para a sala de aula a diversidade e até trabalhar com gêneros considerados pouco elegantes, mas sempre com olhos postos sobre o desenrolar da linguagem e da língua portuguesa. Antigamente tínhamos um livro com cartas de correspondência e copiávamos as cartas. Era dessa forma que se ensinava. Hoje, se você tem uma visão interacionista, um conhecimento mais consistente do gênero, pode trabalhar melhor a partir da troca de correspondência, por exemplo. Se você escreve uma carta-convite e recebe as respostas dos convidados, ou se você escreve uma carta de opinião em resposta a um editorial de jornal, o uso da escrita é outra coisa. Para trabalhar dessa maneira o professor precisa ter formação, conhecer as convenções e as características dos gêneros e subgêneros da correspondência, todo tipo de variações e formulações em português, desde que fiquem claras quais são as prioridades. Não vou dizer quais sequências didáticas devem ser desenvolvidas, mas já vi atividades que eram animações socioculturais para divertir e animar a classe. É preciso ter cuidado porque uma das possíveis derivações do trabalho de sequências didáticas com os gêneros é fazer uma pedagogia superficial: apresentar situações de comunicação sem focalizar as capacidades linguísticas, linguístico-discursivas e as necessidades dos alunos, que precisam aprender a escrever em português textos importantes para a vida.


Os professores sabem quais os gêneros que a escola deve trabalhar?

Joaquim Dolz – No Brasil o período que os alunos passam na escola é curto, por isso precisa ser bem aproveitado. Não podemos perder tempo com textos que os alunos aprendem sozinhos – oralmente ou na escrita, como o diálogo escrito numa sala de bate-papos na internet, por exemplo. Agora, se vamos fazer um projeto de troca de correspondência entre argentinos, espanhóis, portugueses e brasileiros por e-mail, é outra coisa. Inspira os alunos a escrever: aprender a se apresentar numa carta enviada por e-mail; apresentar o bairro, a cidade, o país em que vive. Escrever primeiro na própria língua – português para os brasileiros; espanhol para os argentinos e espanhóis. E, numa segunda fase, escrever uma parte da carta na língua do outro. Essa é uma forma de introduzir o gênero e-mail na escola a partir de finalidades educativas específicas, e pensando numa progressão. O trabalho deve permitir o desenvolvimento das capacidades discursivas com uma visão geral do desenvolvimento da linguagem, caso contrário você está limitando a teoria dos gêneros textuais.


O senhor visitou uma escola pública brasileira. Qual foi sua impressão?

Joaquim Dolz – Visitei apenas uma escola. É ainda uma representação provavelmente ingênua e incompleta, mas gostei muito. O que mais me impressionou foi a direção, a organização da escola e sua relação com a comunidade. Situada num território muito difícil, do ponto de vista sociológico – havia pais de alunos na prisão, mães que vendiam drogas, diferentes gangues –, a escola estava no meio. Dentro da escola todos os meninos estavam protegidos, eram iguais. Valia a lei da escola, e não a da selva. A comunidade tinha um respeito muito grande pelos professores e particularmente pela diretora. Não conheço suficientemente os estabelecimentos escolares, o professorado, os alunos, a realidade brasileira, mas vejo duas realidades no país: uma, mais desenvolvida, como a Europa, e outra, como próxima dos países pobres em vias de desenvolvimento. Podemos encontrar meninos que aprendem inglês ou francês com professores particulares ou em centros escolares de grande qualidade, tendo um suporte muito grande da família e da sociedade, e ver meninos na rua, que não vão à escola, com problemas de letramento importantes. As duas realidades são encontradas no Brasil.


E o trabalho do professor?

Joaquim Dolz – Para ter boas condições de trabalho, por cada três ou quatro horas de presença com os alunos, você necessita de uma ou duas horas de planejamento. Preocupa-me um pouco o cansaço dos professores porque trabalhar com muitos meninos na classe e muitas horas deve ser duro. E, se você tem 35 alunos, treze ou catorze horas a cada dia, é muito difícil preparar antes, está sempre improvisando. É verdade que um professor com muita experiência não precisa planejar as aulas no mesmo nível, mas se tem 35 alunos com problemas muito diferentes – de expressão e adaptação – precisa de tempo. A avaliação das capacidades e dos obstáculos dos alunos e a preparação de projetos de letramento motivadores são muito importantes e não podem ser improvisados. Ao propor inovações da prática habitual, o professor pode sentir-se inseguro, necessitando de tempo para se apropriar das novidades e para se coordenar com a equipe docente. A formação do professor precisa ser reconhecida como tempo de trabalho. Digo isso por um respeito enorme, uma verdadeira admiração pelo trabalho dos professores.


É verdade que o senhor ficou impressionado com o barulho na escola? Faz parte do papel do professor ensinar o aluno a ouvir e trabalhar em silêncio?

Joaquim Dolz – É verdade. O nível de barulho era bastante elevado e chamou a atenção. Isso não é uma crítica, foi uma constatação ao visitar uma escola. Por um lado, o barulho era movimento, fruto do entusiasmo dos meninos pela aula, pois todos queriam responder as questões ao mesmo tempo. Mas o trabalho escolar exige condições, tranquilidade. Suponho que o controle do volume, a escuta, os rituais de respeito à palavra do outro são aprendizagens de linguagem. Se todo mundo fala ao mesmo tempo é impossível ensinar e aprender.

Como vê a sequência didática de leitura?

Joaquim Dolz – As entradas para o aprendizado podem ser diversas e o conceito de sequência didática pode aplicar-se à leitura, mas não é a única possibilidade de trabalho. No caso da sequência sobre a leitura, é essencial a análise dos obstáculos para a compreensão dos alunos. É obrigação da escola ensinar a ler e escrever, habilidades indispensáveis ao cidadão. A produção de textos convoca sempre à leitura, de uma maneira ou de outra, porque quando você escreve, você lê, mas as finalidades são diferentes, o tipo de trabalho também. A novela policial é um gênero interessantíssimo para a leitura. Você pode desenvolver várias estratégias quando trabalha a leitura continuada de uma novela policial. O escritor, quando escreve a novela policial, situa-se em uma posição enunciativa particular, pois tem que enganar o leitor. É preciso uma leitura atenta de indícios para levantar hipóteses e resolver o enigma. Se você lê as cinco primeiras páginas e descobre quem é o culpado, perde o interesse. Do ponto de vista narrativo, é uma ruptura cultural porque o crime, o resultado, aparece sempre no começo e o leitor, etapa por etapa, tem que reconstruir como aconteceu o crime. Do ponto de vista linguístico, sabemos quais são – para alguns – as dificuldades para compreender a leitura desse gênero: compreender as informações, identificar os indícios, interpretar algumas unidades linguísticas. Podemos desenvolver interpretação, criação de hipóteses, operações de relação, pois essas informações estão evidentes no texto. Já pela perspectiva da escrita o foco do trabalho é a estrutura narrativa, são os personagens e os aspectos associados ao gênero, de maneira geral.


E a sequência didática em outras disciplinas?

Joaquim Dolz – Nem sempre a seqüência didática sobre a língua pode ser utilizada diretamente em outras disciplinas. Você pode organizar uma sequência didática em matemática para trabalhar a resolução de problemas envolvendo leitura e compreensão de texto. Em matemática é importante a compreensão das consignas, da explicação, da demonstração de um problema. São gêneros; a demonstração é um gênero, uma consigna um gênero descritivo. O trabalho com os professores de matemática deveria permitir aprender a formular e compreender as consignas do ponto de vista linguístico, para que os problemas possam ser resolvidos corretamente. Isso é um problema de colaboração entre os professores de matemática e os professores de línguas. A disciplinarização dos saberes foi um progresso, primeiro para a ciência e depois para a escola. Há saberes de biologia, saberes de história, saberes linguísticos, e o currículo deve ter uma visão dos saberes que ensina. A interdisciplinaridade pode ser muito interessante, mas é fundamental ter muito claro os objetivos da história, da biologia, da língua. Quando você desenvolve uma sequência em matemática, biologia ou história, também trabalha a língua e o gênero como ferramentas. É importante que os professores de outras disciplinas saibam que os problemas de compreensão e de produção de textos estejam ligados às habilidades provenientes da língua portuguesa.

A Olimpíada de Língua Portuguesa pode ser um caminho para melhorar a formação dos professores?

Joaquim Dolz – Tenho informação de que a Olimpíada é muito bem recebida pelos professores e pelos alunos e o entusiasmo pelo concurso é grande. Se compreendi bem, a proposta tem fundamentalmente três objetivos. Primeiro, possibilita a divulgação de materiais didáticos – ferramentas fundamentais para professores de todo o país. Em segundo lugar, é voltada para os alunos, permitindo o desenvolvimento da escrita de gêneros textuais (poemas, memórias literárias, crônicas e artigos de opinião). E, em terceiro, forma os professores para melhorar o ensino da escrita. Minha visão do projeto é muito positiva: a maneira de envolver as escolas, a proposta de um trabalho coletivo com os professores e a ideia de levar aos diferentes centros escolares uma cultura comum sobre o ensino da escrita, isso me agrada muito.

Temos o desafio de contribuir para a formação a distância dos quase 200 mil professores engajados na Olimpíada por meio de materiais de apoio. Como aprimorar os materiais de formação?

Joaquim Dolz – Vivo a mesma situação. Cada vez que escrevo para professores, me pergunto qual é a melhor maneira de dizer e como vai ser recebido. É preciso fazer um trabalho para melhorar a escrita, ouvir os especialistas que analisam a linguagem dos professores e dos formadores, verificando qual é a forma mais adequada de escrever. Porque eu, quando sou professor, tenho dificuldade para ver a minha atividade, mas se o pesquisador analisa minha prática, posso tomar distância e enxergá-la de maneira crítica, tomar consciência dos entraves.
Em recentes palestras e cursos, o senhor falou sobre validação didática. Explique-nos o que é e como se dá a validação didática. Joaquim Dolz – Primeiro, a validação didática pretende analisar o progresso, o aprendizado dos alunos. Depois de uma seqüência didática é necessário verificar o quanto o menino progrediu na escrita. Segundo, é importante verificar a legitimidade e a coerência dos objetos de ensino do ponto de vista da transposição didática. As características do gênero escolhido são pertinentes para o ensino da leitura ou da escrita? A didatização é adequada em função do grupo de alunos? Terceiro, a validação didática examina também as possibilidades de os professores implementarem as atividades propostas nas suas condições de trabalho. A validação das ferramentas de trabalho que elaboramos tem que encontrar um equilíbrio para esses três aspectos. Se a maneira de trabalhar a leitura ou a escrita não é coerente, pode-se alfabetizar um aluno sem que ele seja capaz de compreender o que está lendo – isso porque, neste caso, o objeto do ensino da leitura está limitado ao código e não à compreensão do texto. Se, depois de quatro ou cinco anos de trabalho, 125 alunos dos 700 matriculados numa escola não aprenderam a ler, isso é um indicador problemático da proposta de letramento. A primeira coisa a fazer, então, é o diagnóstico da situação das escolas, a análise das necessidades dos meninos e professores. Podemos identificar as capacidades iniciais dos alunos para, então, adaptar o trabalho às suas reais necessidades. Em seguida, definir os objetos prioritários para desenvolver a escrita, a leitura, a oralidade, a tomada de palavra para defender-se na vida – um projeto para dignificar a cidadania brasileira.


Atualmente, qual o foco de suas pesquisas?

Joaquim Dolz – Sou um pesquisador um pouco disperso, atuando em várias frentes, algumas pouco conhecidas na Suíça. Neste momento estou com um projeto sobre o ensino bilíngue no País Basco, na Espanha, onde há uma língua que se chama euskera, que é muito diferente do espanhol. Vamos estudar o efeito do ensino de sequência didática para alunos bilíngues em espanhol e em euskera, um projeto que ganhou prêmio de pesquisa. O segundo projeto, muito simples, mas que é um prazer para mim, aborda a utilização de seqüências didáticas com alunos que têm dificuldades de aprendizagem. O terceiro projeto é sobre práticas de formação dos professores na escrita, vou analisar as práticas das diferentes instituições da Suíça francesa: como os professores ensinam a escrita e como os estudantes, futuros professores, realizam as práticas da escrita no curso de sua formação. E a quarta pesquisa, que estou terminando com Bernard Schneuwly, é sobre o estudo dos objetos ensinados nas práticas de aula. São quatro frentes e muito trabalho.

Fale de sua pesquisa sobre o gesto cotidiano do professor na sala de aula. Joaquim Dolz – Essa pesquisa, em colaboração com o professor Bernard Schneuwly, foi realizada com professores do secundário para saber como eles ensinam a gramática. Escolhemos unicamente uma estrutura gramatical, a subordinada relativa e o texto de opinião. Uma de nossas preocupações era identificar os gestos profissionais dos professores quando ensinam o discurso com a gramática. Começamos a entrar nas classes para observar o trabalho que realizam cotidianamente. Alguns gestos são de regulação das interações, trocas com os alunos. Outros são para identificar as dificuldades deles. Outros ainda são gestos para conseguir memorizar, colocar o novo em relação ao antigo, ao trabalho que fizeram no passado. Poderíamos falar também de outros gestos para compreender melhor a atividade docente. Este é um tema novo de pesquisa. No Brasil, Anna Rachel Machado e outros autores também analisam a atividade do professor, observando algumas das suas características. Ainda é cedo para avaliar nossas observações sobre a formação. Os estudiosos de ergonomia trabalham muito comparando práticas e atividades de diferentes professores. Existem pesquisas sobre a formação geral, mas sobre a leitura ou a escrita as pesquisas ainda são emergentes.

Qual o seu contato com os pesquisadores brasileiros?

Joaquim Dolz – Há um tempo fui convidado para dar um curso na PUC-SP e assim fiz meu primeiro contato com as duas pioneiras – Roxane Rojo e Anna Rachel Machado – e com a realidade brasileira. Depois comecei a descobrir outros trabalhos muito diversos graças à presença de muitos pós-doutorados e doutorados que trabalhavam conosco em Genebra. Isso permitiu conhecer – parcialmente – a realidade educativa do Brasil. Também criei uma relação com as professoras Elvira Lopes Nascimento e Vera Cristovão, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná. Tenho um interesse muito grande pelo país emergente e de potencialidades.