segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Para habitar o mundo é preciso habitar a língua

Para habitar o mundo é preciso habitar a língua

Dan VAN RAEMDONCK, lingüista, professor da Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica)

Para decifrar o mundo, a criança tem de poder escutar, ler, falar, escrever. Mas, garantia de emancipação, a cotação do francês não brilha muito. Como melhorar o domínio da língua? E o da gramática? Mas de que gramática está se falando?
Numa democracia saudável, a escola tem como missão, entre outras, a de tornar nossas crianças autônomas, providas de espírito crítico, aptas a se inserir no tecido social sendo capazes, ao mesmo tempo, de compreender seus desafios e implicações. Em uma palavra, torná-las cidadãs.
Seguramente, esta compreensão necessita uma capacidade de decifração do mundo, que remete sobretudo às competências de escuta e de leitura, cujo domínio se torna desde logo fundamental, tanto quanto, aliás, as do falar e do escrever. Base das outras aprendizagens, condição de emancipação social, de integração e de acesso à cultura, o francês se erige verdadeiramente como "base das bases".
Ora, eis que, à luz de várias pesquisas sobre os desempenhos em matéria de leitura, os alunos da comunidade francesa da Bélgica ficariam relegados à posição do usuário do "chapéu de burro", no canto da classe e da classificação. Não é preciso muito mais para ver reaparecer a gramática, que se apresenta como uma questão incontornável imposta a todos os que se preocupam com a melhora do domínio da língua francesa por todos.
Mas de que gramática se está falando? Que instrumentos se está convocando? Basta que não sejam adequados a seu objeto para que todo o processo fique comprometido. É aí que o professor, o lingüista e o responsável político se encontram.
Ao entrar na escola, o aluno possui um conhecimento intuitivo do funcionamento da língua sobre o qual vem se sobrepor um discurso que supostamente descreve e explica o que até então foi vivido naturalmente. Um discurso freqüentemente pouco adequado, que dará o sentimento de estudar uma língua estrangeira, ou até pior ainda, uma língua morta, arrancada de suas raízes e de toda possibilidade de evolução.
A melhor transposição didática só pode oferecer o que ela tem. Não é, portanto, aí que se deve buscar as causas do problema. Se o saber gramatical, considerado sem razão como um dado catequístico, sofre de incoerências, o objetivo legítimo de apropriação do sistema da língua não poderá ser alcançado, o que leva às atitudes de rejeição que freqüentemente se observa.
Com efeito, não se pode desconsiderar a questão da representação do saber gramatical que assumem os diferentes participantes do processo de ensino. Tanto o professor quanto o aluno têm uma imagem da gramática - geralmente reduzida a seu componente ortográfico - que condiciona sua atitude ou seu interesse frente a este saber. Ora, o mínimo que se pode dizer é que essa atitude não se caracteriza, em geral, por um amor desenfreado pela coisa gramatical. Estão em causa, decerto, uma visão - tradicional, normativa - dessa matéria, um discurso inapropriável sobre a língua.
Os atores do processo de ensino não se sentem habilitados pela "Instituição Língua" - ninguém nunca os fez sentir ou saber que o eram - a questionar o saber ou, mais ainda, o discurso sobre o saber. Resultam dessa atitude, é preciso dizer, estratégias de evitamento ou freqüentemente tentativas de transposição fiel do discurso dominante - sem falar das respostas impotentes do tipo "é assim porque é assim" às perguntas ingênuas, mas pertinentes, dos alunos.
O que se impõe com urgência - ao lado de certas preocupações de transcrição, mas remetidas a uma proporção mais justa - é um retorno do discurso reflexivo sobre as práticas de linguagem assim como o desenvolvimento das competências de escuta e de fala ao lado das de leitura e de escrita. Aprender efetivamente a codificar e produzir um discurso - assim como a decodificar, até mesmo decifrar, um outro - requer competências que não se constroem somente pela prática escolar do discurso gramatical tradicional.
A apropriabilidade de um discurso gramatical digno deste nome dependerá da reinstauração do sentido. Com efeito, se o saber faz sentido para o aluno, se o sistema apresentado é organizado de maneira coerente e não se reduz a uma classificação ou a uma etiquetagem descoladas do uso e da significação, a gramática aparecerá mais conectada com a língua tal como a exploram os diferentes usuários, e não será mais vista como um discurso abstrato inapropriável porque inadequado. O que se propõe aqui é uma mudança radical de mentalidade. Trata-se de devolver à gramática o seu lugar legítimo. Ninguém pretende, de fato, interferir no sistema gramatical de nossa língua. Ninguém tem meios para isso: este sistema de regras de funcionamento está fora do alcance do usuário individual. Mas precisamos poder questionar o discurso dominante sobre a gramática, discurso que marca um ponto de vista sobre o sistema mas não se confunde com ele, e que repousa atualmente mais no autoritarismo de uma relação de forças socialmente instaurada do que sobre a autoridade da reflexão e do espírito crítico que todo locutor está habilitado a sustentar. Isso não significa, compreenda-se, a promoção de uma nova anarquia gramatical, mas sim a refundação progressiva da regra pela reavaliação de seu sentido.
Caberá, no fim das contas, tornar os usuários conscientes de sua responsabilidade de produtores de linguagem, podendo usar livremente, a fim de expressar o que quiserem, os meios postos à sua disposição pelo sistema da língua. Um dos objetivos do professor poderia ser, então, facilitar a reapropriação, pelos usuários, de sua língua, de seu direito à fala, por meio da reapropriação do discurso feito sobre a língua. É o preço a pagar para permitir aos futuros cidadãos construir-se, e situar-se num sistema social onde o domínio dos códigos, das linguagens, em suas dimensões de produção e de interpretação, é uma condição necessária ao exercício de seu espírito crítico e, portanto, de sua autonomia e de suas liberdades.

Publicado no jornal LA LIBRE BELGIQUE em 20/11/2003 [Tradução: Marcos Bagno]

Extraído do site oficial de Marcos Bagno

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A IGNORÂNCIA É CARA Affonso Romano de Sant'Anna

A IGNORÂNCIA É CARA

Affonso Romano de Sant'Anna

Três noticias no jornal me falam da mesma coisa de forma diferente.

A primeira, quase como se fosse uma revelação ou escândalo, informa que um colégio de subúrbio no Rio, lá na Penha, foi o melhor classificado entre todas as escola do estado. O detalhe é que não tem nada daquilo que caracteriza os grandes estabelecimentos de ensino. Ou seja, não tem prédios modernos, não tem quadra de esporte, nem mesmo um auditório. E, no entanto, a Escola Municipal João de Deus obteve a maior nota no IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica).

Como explicar isto?

Simples. simplíssimo: a chave é a LEITURA. Diz a diretora Luciana Landrino: "Temos projeto de desenvolvimento pela leitura, desde a pré-escola até o quinto ano. Uma vez por semana, os alunos são obrigados a pegar dois livros de literatura para ler em casa". Outra invenção do colégio é a ênfase na redação: criaram o "Correio Escolar". Os alunos devem escrever toda semana uma carta para um colega de classe e os textos são lidos em voz alta.

A segunda notícia veio na página de ciência de um jornal e informa que "O Brasil forma mais doutores em humanas" e que as ciências exatas e da Terra caíram para o segundo e sexto lugar entre as que mais geraram PhDs entre 1996 e 2008". A matéria começa por dizer que "o doutorando brasileiro está cada vez mais interessado em Machado de Assis e menos em relatividade". Li isto com interesse e quase espanto, logo eu que sendo leitor de Machado, cada vez me interesso mais pela relatividade.

Pois bem. A reportagem continua, mas exibe um mal entendido, quase um lamento pelo fato de as ciências humanas terem crescido mais que as exatas. Diz uma autoridade do CNPq que o país precisa de pessoas para o programa espacial, o programa antártico, a política nuclear, as questões que envolvem o clima, agricultura e pré-sal.

Concordo. Mas onde o mal entendido?

Uma coisa não elimina a outra. Está provado nas sociedades mais desenvolvidas que a formação em "humanas" e "sociais" aperfeiçoa a formação nas "exatas". Meu amigo Cláudio Moura Castro, que hoje está em Belo Horizonte e passou uns 30 anos no exterior lidando com a educação, tem dados irretorquíveis de que os engenheiros, economistas, biólogos, etc. melhoram muito quando têm uma formação humanista.

E aí entra a terceira noticia desta semana, que vem a favor de minha tese. Informa o correspondente Rodrigo Pinto, lá de Londres, que no Reino Unido ficou provado nos últimos 12 anos que a indústria cultural foi a que mais gerou empregos. O governo inglês chegou à conclusão de algo que estou repetindo há milhares de anos: de que a cultura é um setor "estratégico", que não tem nada a ver com o "supérfluo". Fizeram as contas e viram que o teatro, a música e outras áreas da cultura, além do que devem produzir, geram dinheiro e emprego.

Por isto, quando as pessoas ficam discutindo o pré-sal vendo nele o futuro do Brasil, eu costumo botar a questão de cabeça prá baixo e dizer: o verdadeiro pré-sal é a cultura.

Machado de Assis não é incompatível com a lei da relatividade.

O crescimento de doutores nas áreas de humanas e sociais deve ser visto como um progresso.

Até as crianças da escola João de Deus na Penha sabem disto.

De resto, é como já li em alguma parte: se você acha que a educação é cara, experimente a ignorância.

Meus caros: a ignorância, esta sim, é caríssima.

Fonte: site Leitura Crítica